Publicado em 1946, A rua, de Ann Petry (1908-1997), tornou-se rapidamente o primeiro romance de uma autora negra a superar a marca de 1 milhรฃo de exemplares vendidos nos Estados Unidos โ e bateu o recorde com folga: vendeu 1,5 milhรฃo de cรณpias. A obra consegue um equilรญbrio raro ao unir observaรงรฃo social implacรกvel a caracterรญsticas da melhor tradiรงรฃo do thriller.
A maior parte do enredo se desenvolve, efetivamente, em uma rua, a 116th Street, que tem papel-chave na vida da protagonista, Lutie Jones. ร no tumultuado bairro nova-iorquino do Harlem que ela se instala, com o filho de 8 anos, num apartamento de um prรฉdio decadente. Ali, a ex-empregada domรฉstica convive com um zelador de presenรงa ameaรงadora e a dona de um bordel, e busca complementar sua pouca renda como cantora em um clube de jazz. Nas palavras da escritora americana Tayari Jones, que assina o posfรกcio do romance, a 116th Street "รฉ a resoluta antagonista e representa a intersecรงรฃo entre racismo, sexismo, pobreza e fragilidade humana" e Lutie, "uma americana. Contudo, ela รฉ uma americana negra, e esses termos nem sempre combinam."
Ann Lane (depois Petry) nasceu numa pequena cidade do estado de Connecticut onde havia apenas quatro famรญlias negras. A origem de classe mรฉdia nรฃo impediu que Ann e suas irmรฃs passassem por vรกrios episรณdios de discriminaรงรฃo racial, mas permitiu que ela frequentasse a universidade, formando-se aos 25 anos em ciรชncias farmacรชuticas. Trabalhou sete anos na farmรกcia da famรญlia atรฉ que, em 1938, jรก casada com George Petry, mudou-se para Nova York com a intenรงรฃo de tornar-se escritora, iniciando-se na carreira jornalรญstica.
Em 1946, enquanto terminava seus estudos de escrita criativa na Columbia University, publicou A rua, um sucesso estrondoso que a tornou uma celebridade, principalmente nos cรญrculos de cultura negra, com repercussรตes no Brasil, onde o romance foi publicado em 1947 pela Companhia Editora Nacional. A habilidade em retratar sua รฉpoca e lugar fez com que A rua merecesse da esposa de Martin Luther King, Coretta Scott King, o seguinte elogio: "ร um trabalho de crรญtica social poderoso e implacรกvel. Poucas obras de ficรงรฃo iluminaram tรฃo claramente o impacto devastador da injustiรงa racial."
No entanto, a fama incomodou profundamente a escritora, que voltou para sua regiรฃo natal em busca de paz e privacidade, tendo vivido discretamente atรฉ sua morte aos 88 anos, deixando marido e filha. Sobre A rua, Petry afirmou que seu objetivo foi "mostrar como o meio social pode, simples e facilmente, mudar o curso da vida de uma pessoa". A autora โ que frequentava grupos de esquerda em Nova York โ defendia com convicรงรฃo a arte engajada. "A mim parece que toda grande arte รฉ propaganda, seja a Capela Sistina ou a Mona Lisa, Madame Bovary ou Guerra e paz", escreveu num ensaio. "Quando o romancista mostra como a sociedade afeta seus personagens, como foram formados e delineados pelo vasto e precรกrio mundo em que vivem, estรก escrevendo uma obra de crรญtica social, chame-a assim ou nรฃo."
Petry publicou contos, ensaios e vรกrios livros para o pรบblico infanto-juvenil, alรฉm de dois outros romances: Country Place (1947), ambientado entre a elite branca de uma cidade de Connecticut, e The Narrows (1953), uma histรณria de amor trรกgica entre um homem negro e uma mulher branca. Suas obras vรชm conquistando novos leitores nos Estados Unidos, apรณs o lanรงamento, nos รบltimos anos, de seus principais romances na prestigiosa coleรงรฃo Library of America.